sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Dança da solidão.

A solidão se apresenta feito crônica, me seduz em suas primeiras linhas, no decote traz uma melancolia poética a ser degustada com algum licor. Coisa que ignoro pela manhã, enquanto tomo o café que adoço só na xícara e penso nos compromissos do dia. Saboreio-a, em sua atração injustificável, junto ao amargo que desce em três goles e não mais que isso. No fim do terceiro, o sabor amarra a boca, feito palavra de quase amor não dita, causando certa ânsia que a cabeça, cambaleando, nega. Não me escapa no almoço, entre as notícias de um jornal oportuno, conversas sobre a inflação e o emprego indigesto, ela me abraça às costas. Suavemente, suas mãos deslizam entre os músculos rígidos mas, ao contrário de uma atração sensualizante, somente me aperta o peito e apressa. Às 3, bate à porta. Distraído, não pergunto o nome, abro-a. Ela me traz algumas fotos que lembram quedas de amor-travesso em árvores floridas. O amor, ah, o amor caiu na descida. Todo estabanado me levou um dente, justo o da frente. Tem dias que me surra na esquina, sem motivos entende a perna e me derruba, no meio de um dia ensolarado e da avenida lotada. Alguns socos  no estômago ela me dá com livros, em poemas marcados a lápis e em páginas destacada com uma pequena dobra na orelha. Esbarra em mim com a frequência que o mindinho se encontra com as quinas das camas e os amantes apaixonados se beijam. Chega sem marcar ou telefonar, entra e se deita ao meu lado na cama e sonha. Alugo-me para sonhar, é o conto de Gabriel Garcia que embala o delicado sono da solidão. Feito uma dona romântica, não me abandona nem mesmo quando insone tento dormir. De madrugada, puxa a coberta justo quando os olhos cansavados se deixavam fechar e me busca o telefone, me lançando ao ato suicida de procurar números na agenda. Nega-se a fazer massagens no pés e pouco perfuma o cubo branco que abraço chamando de lar. A solidão é uma moça muda, nunca ouvi sua voz embora imagine-a perfeitamente, doce. Com os dias que passam indiferente, a observo com quem cultua uma deusa ancestral sem motivos. Eu, que pouco religioso fui, venho arrumando altares para a receber e criado cerimonias para a adorar. Tem tons aquarelas em sua pele nua, os mais parecidos com o do amor possível, como verde-água, azul-céu, vermelho-vivo. Tem gosto requintado para comer, com o tempo me corta a fome. Abatido, ando a passarinhar aos cuidados das comidas doces e dos sabores cítricos. Ela é delicada no toque, me ensina sobre coisas da vida, compartilha meditações e ensinamentos em um silêncio íntimo que me introduz numa comunicação sem palavras. Absorto, esqueço os compromissos, deixo de responder emails. Vejo as mensagens de Natal piscando, em colorido, na tela de aparelhos com pouca bateria. Apaixonado pela solidão, deixo-as de lado. A moça, nascida de meio-amores que me abandonaram em ato, me faz agora delirar. Já não sou o grande Carlos. Agora, talvez, só o outro - Drummond. Perdido, na ficção realista do delírio, não mais datilógrafo nas repartições ou obedeço os prazos. Eles me gritam que tornei-me louco. Andarilho de roupas largas, coitado, de amor perdeu o contato com o real. Sou mais: agora poeta.