quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Poesia em tempo de fome.

Dizem que aos poetas não resta outro destino a não ser de transformar o real, material, em versos inúteis e, quando muito, com alguma métrica. Há os que se debruçam no estudo do som - teimosos, insistem nos heptassilábos, redondilhas maiores e outras rimas. Há os que fecham a janela, solitários e carrancudos, se abstraem do mundo lá fora e voltam-se para o dentro, tentam, insistentes, compreender e destrinchar o que se sente. Com esses, nascem os grandes romances, a esperança do amor, as noites de boemia que terminam com camisas brancas manchadas do batom vermelho. Apesar de sempre inúteis - quem liga pra versos em tempos de fome? - há sempre as palavras rebeldes, em estado de lança, que já nascem com a nobre missão de gritar. Dizem, no meu tempo, "tudo está bem", "não há com o que se preocupar", "só tome cuidado quando sair de casa". Há, nesses meus dias, a alucinação autoimune - não converse com estranhos, não olhe pra quem do outro lado dorme no chão. Abstraia-se! Anule-se! Mecanize-se! Mas os poetas são bons sonhadores, tem pés preguiçosos que os impedem de seguir o ritmo, são amigos das inutilidades e se importam com o desimportante. Há quem diga que as revoluções não são feitas de poesia, gritam-nos: Sonhadores! Ordenam: Peguem as armas, reaja! A violência de nossos opressores não silenciará a ira dos oprimidos! Virá o dia da vitória - eu também acredito. Esquecem, os inocentes do Leblon e os combatentes de Sierra Maestra, que todas as revoluções gestaram seus poetas. Desde Maiakóvski que no tempo de fome e fogo, gritava sonhador, os seus versos junto as fábricas enquanto os operários da Revolução Russa respondiam: Um fuzil na mão e Maiakóvski no coração!  Amavam, também, no frio de uma trincheira. Há os longos livros de amor-coragem de um Neruda mais apaixonado que explorado mas que tinha escolhido definitivamente o seu lado - o dos chilenos massacrados. Maio de 68 teve os seus poetas que no front, além de flores, carregavam um peito de palavras. No Brasil, país de revoluções pacíficas, de golpes silenciosos e de cidades que não se vê - nasce, na periferia que morre sob as balas do Capitão do Mato, palavras tímidas que me fazem escolher um lado. Sussuram, ainda frágeis frente aos algozes, que a periferia é a nova senzala.  É preciso agachar, silenciar - no centro, os prédios e muros, nos contam a lenda de uma cidade que não existe. Da televisão, os barulhos dos carros, nos impedem de ouvir o último suspiro. Nos desumanizamos para produzir sub-humanos, de carne e osso e algumas poesias, como nós. Ainda sim, sub-humanos, de bala e pouco direito, mas que ainda pulsa - feito ferida aberta que me incomoda no braço.